segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Açude Boqueirão ameaça 500 mil



A paisagem é de mar em pleno Cariri paraibano. Sol forte, lanchas e jet skis na água, banhistas, peixes, passeios de barco e até ilhas com casas de luxo. Se fosse no Litoral, a cena seria perfeita.

Mas o cenário é observado no Açude Epitácio Pessoa, localizado no município de Boqueirão, no Semiárido paraibano (a 161 Km da Capital). Segundo maior reservatório do Estado, o açude de Boqueirão, como é conhecido, abastece pelo menos 18 municípios e sua poluição ameaça a saúde de mais de 500 mil pessoas. Cerca de 50% das cidades abastecidas pelo Boqueirão registraram casos de cólera, doença diarreica infecciosa grave que pode levar a morte.


Dados do Ministério da Saúde (DataSus) revelam que a Paraíba registrou, no total, 281 internações hospitalares por cólera, em 53 municípios, somente no período de janeiro de 2008 a agosto deste ano, com uma morte. Os gastos com essas internações somam mais de R$ 94,5 mil. O segundo maior reservatório abastece, inclusive, a segunda maior cidade da Paraíba – Campina Grande – que registrou o maior número de internações por cólera este ano (13).


No grande “mar de Boqueirão”, duas realidades distintas: de um lado, praticantes de esportes náuticos, ilhas e mansões dentro do reservatório poluem suas águas com esgotos que correm “mar” adentro. Do outro, mais de 100 famílias vizinhas desse grande açude estão consumindo suas águas, sem tratamento. Crianças adoecem com diarreias.


As águas do Boqueirão (com capacidade para armazenar 411,6 milhões de metros cúbicos) também estão sendo contaminadas por agrotóxicos devido às plantações próximas, por fezes de animais que tomam banho dentro e banhistas, que jogam lixo e poluem.

Margens

Na última terça-feira, a reportagem visitou o Boqueirão e as famílias que moram na chamada “Vila do Sangradouro”, próximas as suas margens. Essa comunidade também convive no inverno com o risco de inundações quando o reservatório atinge sua capacidade máxima. “Em 2008, a água chegou no quintal de casa. Todas as crianças daqui tiveram diarreia e baixaram o hospital”, afirmou o agricultor José de Arimatéia Oliveira santos, 37 anos, que mora com a mulher, Nilda, 27 e os quatro filhos.


“Quando tem o hipoclorito de sódio, a gente bota na água, mas quando está faltando como agora, a gente coloca só água sanitária”, disse o agricultor. Maria Jaqueline e os irmãos José Luan, 4; Francisco, 10 e Adeildo, 14, já aprenderam a conviver com isso. “Hoje, não tem água”, disse Jaqueline, constatando que não havia água na torneira. As águas do Boqueirão vêm para a comunidade através de uma bomba, que joga dentro de uma caixa e distribui para as casas.


A família da agricultora Laudeci Paulino da Silva, 44 anos, que tem 6 filhos, bebe água sem qualquer tratamento. “A gente não coloca esse negócio na água porque é muito ruim. As crianças reclamam do gosto. Então, não boto nada”, revelou Laudeci.

Dentro do Boqueirão, um dos filhos de Laudeci, o garoto Carlos Antônio, 10 anos, retirava em um balde a água que ele e a família bebem, sem nenhum tratamento. Sem se dar conta dos riscos, ele ainda dividia espaço com um jet ski cujo condutor ignorava a presença do menino.

Mansões e até marina na ‘praia do Interior’

Dentro da comunidade, em meio à pobreza e a paisagem seca do Cariri, existe uma marina, próxima à margem do açude. As ilhas que se formaram ao longo da barragem e abrigam casas se estendem até o vizinho município de Cabaceiras e chegam a valer mais de R$ 1 milhão, no reservatório reconhecido como uma “verdadeira praia do interior”.

“Indo de barco até Cabaceiras, você enxerga riqueza e mansões que não vê em todo lugar e nem na Capital. É um descaso com a saúde. Vivi minha infância nas margens do Boqueirão e, naquela época, havia respeito e preservação. Hoje, o açude é de empresários”, afirmou o comerciante José Vital. “Por causa desses problemas e da poluição, a quantidade de cloro que se coloca na água é bem maior. Às vezes, a gente abre a torneira e a água sai quase branca como leite. O cheiro é de cloro puro”, acrescentou.

Falta tratamento em 17 cidades da PB

Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, o professor Ulisses Confalonieri, doutor em Doenças Tropicais e uma das maiores autoridades na área, disse que é preciso fazer uma coleta no açude de Boqueirão para saber o grau de contaminação da água e constatar se a bactéria da cólera está presente. Ele acredita que os casos de cólera registrados na Paraíba são endêmicos e de pouca agressividade. Na Paraíba, 833 mil paraibanos não têm acesso à água tratada através da rede geral, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/Pnad 2009). Além disso, moradores de 17 municípios consomem água sem nenhum tipo de tratamento, segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008, do IBGE.

“A questão crítica na Paraíba é o saneamento básico. A cólera e outras doenças diarreicas estão associadas à qualidade da água, falta de higiene, esgotos e lixo. É preciso saber se a água que está sendo consumida é segura”, afirmou Ulisses Confalonieri. Ele explicou que podem ocorrer casos de cólera no contexto de outras doenças diarreicas causadas por saneamento e higiene deficiente. “Não tenho conhecimento de casos recentes de cólera no Brasil, em proporções epidêmicas. Esses casos devem ser de uma cólera endêmica, porque se fosse epidêmica estaria se espalhando com maior rapidez e matando muitas pessoas”, esclareceu.

A cólera foi reintroduzida no Brasil em 1991, a partir da explosão epidêmica em vários países da América do Sul, segundo o Ministério da Saúde. “A cepa ou variante que entrou no entrou no País em 1991 era de pouca agressividade. Essa cepa da Paraíba pode ser remanescente daquela e um foco endêmico residual. Para saber se é a mesma teria que fazer a coleta da água para descobrir a tipagem da bactéria”, explicou.

MS lança nota técnica

Um informe técnico sobre a cólera foi divulgado pelo Ministério da Saúde (MS) no último dia 29 devido ao surto da doença, confirmado em setembro passado, no Haiti, com mais de 3,3 mil casos confirmados e pelo menos 259 óbitos naquele País. O informe técnico traz orientações às Secretarias Estaduais de Saúde, a profissionais e viajantes entre o Brasil e áreas afetadas pela doença.

Confalonieri não descarta a possibilidade desse tipo de cólera mais agressiva entrar no Brasil. “Quem for para o Haiti deve ter cuidado. O risco sempre tem, porque hoje, não tem mais polícia sanitária. Isso acabou. As fronteiras são permeáveis. Então, possui o risco de introdução da cólera. É importante discutir o saneamento básico”, alertou o especialista.

Fonte: CP - Henriqueta Santiago

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